“Conflito das Águas” (2010): O futuro de São Paulo?

De dezembro de 1999 a abril de 2000 a cidade de Cochabamba, na Bolívia, foi tomada por uma onda de protestos violentos contra a privatização da água. O ocorrido foi colocado como pano de fundo no filme Conflito das Águas (También la lluvia, 2010), que narra a história de um filme sobre Cristóvão Colombo sendo gravado em meio ao conflito pela água.

Cartaz original de Conflito das Águas

Cartaz original de Conflito das Águas, destacando o fato de o filme ter sido escolhido como representante da Espanha no Oscar. Porém, não chegou a completar a lista final.

No roteiro do filme dirigido por Sebastián (Gael García Bernal) e produzido por Costa (Luis Tosar), Cristóvão Colombo é um homem cruel que só está interessado em pegar todo o ouro que encontrar na América, explorando, para isso, os índios, que acabam por organizar uma rebelião contra o estrangeiro. Paralelamente a isso, uma empresa americana comprou a estatal responsável pelo fornecimento de água em Cochabamba e está cobrando valores absurdos para o consumo, totalmente não condizente com o salário que a maioria dos habitantes recebe. A situação chega ao ponto em que até mesmo pegar água da chuva torna-se crime, daí o título em espanhol: “también la lluvia” = também a chuva/até a chuva. Nesse cenário destaca-se Daniel (Juan Carlos Aduviri), ao mesmo tempo personagem crucial no filme, no papel de um índio rebelde, e líder da revolta popular contra a privatização da água.

Sebastián (Gael García Bernal) dirige Daniel (Juan Carlos Aduviri), personagem crucial e líder da revolta popular.

Sebastián (Gael García Bernal) dirige Daniel (Juan Carlos Aduviri), personagem crucial e líder da revolta popular.

Toda essa situação é, no mínimo, tensa. Sebastián e Costa se preocupam apenas com a realização do filme: o conflito pela água só importa no sentido de atrapalhar ou não as gravações. Daniel está no filme porque precisa do dinheiro mas, também, porque sua filha sonha em ser atriz, ao mesmo tempo em que se mete em confusões com a polícia devido aos conflitos. E o governo boliviano jogou tudo nas mãos das empresas estrangeiras e ignora os acontecimentos, oferecendo champanhe enquanto o pau quebra do lado de fora. Obviamente que tudo isso culminará numa situação de caos total: o término das gravações será ameaçado e pessoas terão suas vidas drasticamente alteradas. Porém, no fim, só um personagem mudará de opinião e verá a importância que toda a revolta tem. E a água? Essa voltará a ser um bem de todos, pelo menos temporariamente.

Cenas do filme sobre Cristóvão Colombo

Cenas do filme sobre Cristóvão Colombo

Vale a pena assistir Conflitos das Águas para pensar sobre a crise que tomou conta de São Paulo e de outros estados, mas o filme em si é problemático. A diretora Icíar Bollaín acertou no paralelo entre a conquista do ouro e a conquista da água e na ideia de colocar um filme dentro de um filme mas, ao mesmo tempo, soa hipócrita ao fazer isso: será se ela também não explorou os atores coadjuvantes e figurantes do filme, pagando-lhes menos do que deveria? Nenhum deles fez um outro papel relevante e, atualmente, andam sumidos. Além disso, o filme é uma produção espanhola, bem como sua diretora, e foi gravado na Bolívia. Uma produção europeia falando de um conflito da América Latina. Ou seja, o problema foi bem mais grave do que o filme mostra.

Cenas do conflito pela água.

Cenas do conflito pela água.

Resumo do contexto sócio-histórico

Conflito das Águas é baseado em fatos reais. A guerra da água ocorrida em Cochabamba teve como antecedentes motivos puramente políticos. Quando a ditadura militar bolivariana acabou, em 1982, o país estava economicamente quebrado. Com uma inflação que chegava a 25000% ao ano, nenhum outro país queria investir na Bolívia e a solução encontrada foi apelar para o Banco Mundial, que propôs a privatização das estatais. Assim, ao longo dos anos, todo o sistema ferroviário, telefônico, aéreo e as indústrias de hidrocarboneto foram privatizadas. Por fim, a água acabou sendo também privatizada e vendida para uma empresa americana, que cobrava $20 por mês, muito mais do que o povo da Bolívia podia gastar. Em pouco tempo, toda a população se revoltou, incluindo a classe média, que não gostou nem um pouco da alta no preço na conta de água, e até mesmo crianças se meteram na confusão, e uma greve geral foi convocada, greve essa que durou 4 dias.

Cenas reais da "Guerra da Água de 2000"

Cenas reais da “Guerra da Água de 2000”

Mesmo com toda a violência da polícia, com todas as prisões, com todos os feridos e com 96% da população exigindo o cancelamento do contrato com a empresa estrangeira, o governo não cedeu e a Bolívia entrou em estado de sítio. Todas as comunicações foram cortadas e o país ficou temporariamente isolado: ninguém entrava, ninguém saía.

No final, depois de 4 meses de conflitos, após os protestos terem se intensificado com a morte de um adolescente e a polícia não podendo mais garantir a proteção dos empresários, o governo assinou o cancelamento do contrato e a água voltou a ser pública. No entanto, mesmo pública, o preço continuou alto para boa parte da população (leia-se: para os pobres) e muitos continuaram sem ter acesso direto à água.

O futuro de São Paulo?

Um presente: água.

Um presente: água.

No final do filme, Daniel presenteia Costa com um vidrinho de água. De repente, a água se tornara um bem tão precioso quanto o ouro que Colombo buscava. Com a confirmação do racionamento (ou “restrição hídrica”), a água em São Paulo caminha para o mesmo destino da água em Cochabamba, a menos que aconteça um milagre. O Brasil, assim como a Bolívia, também passou por um ditadura militar que quebrou o país economicamente e resultou em várias empresas privatizadas nos anos que se seguiram. Só falta privatizar a água. Pode parecer que não, que não é para tanto, que tudo vai se ajeitar, mas é um problema cultural do brasileiro achar que tudo vai dar certo. E, enquanto continuarmos achando que não é nada demais, o Brasil, com São Paulo na frente, vai caminhando para uma guerra, nos moldes dos que aconteceram na Bolívia.

Trailer legendado em inglês do filme Conflito das Águas:

*Link para o documentário A Corporação (The Corporation, 2003), que mostra cenas reais da Guerra da Água na Bolívia: https://www.youtube.com/watch?v=Zx0f_8FKMrY

Fontes: imdb, wikipedia, google imagens.